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O papa da literatura pop

Feira literária em Guanhães celebra a memória de Roberto Drummond

Por Jorge Fernando dos Santos*

A convite do professor Luís Carlos Pinto, estarei neste sábado (06/8) na cidade de Guanhães, Vale do Rio Doce, para participar de uma feira literária na Escola Estadual Odilon Behrens. O evento celebra os 20 anos da morte do saudoso ex-aluno Roberto Drummond, com o qual convivi no jornalismo. Além de falar sobre sua obra, vou autografar meus livros “Primavera dos mortos” e “Cordel camará” – com direito a uma roda de capoeira.

Quando comecei a colaborar no caderno de cultura do Estado de Minas, nos anos 80 do século passado, Roberto era um subeditor afável e gentil no trato com os repórteres. Morador da Rua Ceará, gostava de flanar pela Savassi, sendo inclusive autor do termo “savassiar”. Batizei com esse nome o soneto que encerra o meu livro “A turma da Savassi”, musicado por Luiz Enrique. Depois de morto, o escritor foi merecidamente homenageado com uma estátua na Rua Antônio de Albuquerque, no coração da famosa praça.

Autor de “Hilda Furacão”, foi homenageado com estátua na Savassi

Contista e romancista consagrado, Roberto aprendeu com Ernest Hemingway a alimentar um verdadeiro folclore em torno de si – a começar pelo mistério que fazia sobre a própria idade. Sou testemunha de sua batalha pelo sucesso literário. Ele costumava percorrer as livrarias de BH, pedindo para exibirem seus livros nas vitrines. Curiosamente, mesmo exalando otimismo e uma certa dose de ingenuidade, a maioria deles tem no nome a palavra morte ou alguma referência a ela.

Com passagem pelo mundo publicitário e pela revista Alterosa – onde rebatizou o cartunista Henrique de Souza Filho com o pseudônimo Henfil –, Roberto era craque na titulação. Nunca me esqueci da manchete sobre o incêndio ocorrido numa igreja de Ouro Preto. Na mesma época, um famoso bairro de Lisboa tinha sido devorado pelas chamas. “Fantasma do Chiado ronda Ouro Preto, ele sapecou em letras garrafais. Simplesmente genial!

Videopeça teatral

Atleticano de fé, Roberto Drummond ajudou a projetar o atacante Reinaldo, que, num concurso promovido por ele, seria eleito o melhor jogador dos times mineiros de todos os tempos. Sua trajetória jornalística teve impulso quando o Binômio publicou matéria de sua autoria denunciando o tráfico de escravos no Norte de Minas. Para comprovar os fatos, o jovem repórter chegou a comprar um casal de retirantes nas mãos do motorista de um caminhão “pau-de-arara”. O caso foi parar na revista Times.

Diz a lenda que Roberto esperava ser preso pela ditadura, por supostas ligações com o PCB. Certo dia, olhando pela janela do apartamento, teria visto um jipe do Exército parado em frente ao prédio. Ao ouvir a campainha, mandou a mulher fazer sua mala, beijou a filha e se despediu emocionado. Ao abrir a porta e estender os punhos pronto para ser algemado, foi cumprimentado por um sargento, que lhe entregou um exemplar da revista do CPOR na qual tinham publicado um dos seus contos.

Em 1983, Breno Milagres adaptou um conto do Roberto para o teatro. Nascia ali a videopeça “Quando fui morto em Cuba”, que causaria grande polêmica nos meios artísticos. Fui encarregado de editar o programa em forma de tabloide, ocasião em que entrevistei o autor. Ele me garantiu que, entre os convidados para a estreia no Teatro Clara Nunes, estavam Chico Buarque e Fidel Castro – que, naturalmente, não compareceram. Rei do marketing, nosso “papa da literatura pop” sabia vender seu peixe como ninguém.

Certo dia, em 1990, ao editar a coluna social de Eduardo Couri, ele deixou passar o nome e a foto de uma persona non grata. Ao ser repreendido, desentendeu-se com o editor-geral e foi demitido. Antes que a poeira baixasse, aceitou o convite para escrever crônicas no Hoje em Dia, periódico recém-fundado por Newton Cardoso, notório desafeto dos Diários Associados. Tanto que só nos referíamos a ele como “o eventual ocupante do Palácio da Liberdade”.

De volta à velha casa

Intempestivo, Roberto gravou um comercial para o concorrente, convocando os leitores para seguir seu exemplo: “Faça como eu, mude você também para o Hoje em Dia”. Aquilo foi a gota d’água e recebemos ordens para não mais publicar notícias sobre ele e seus livros. Quando “Hilda Furacão”foi lançado, eu editava a página de livros e pedi ao colega Marcello Castilho Avellar para escrever uma crítica. Como já esperávamos, o texto foi vetado. Sugeri que ele o guardasse na gaveta, pois tinha certeza que um dia seria publicado.

Anos depois, a Rede Globo adaptou o livro para a minissérie estrelada por Ana Paula Arósio. Com o sucesso estrondoso, o autor voltou triunfante ao Estado de Minas. Nessa época, a redação já tinha se mudado para o Edifício Pedro Aleixo, na Avenida Getúlio Vargas. Roberto não só foi readmitido como cronista, como teve a noite de autógrafos dos seus sonhos ao lançar o romance “O cheiro de Deus”, no Palácio das Artes, com total apoio do jornal.

Em 21 de junho de 2002, ao sair para tomar café numa lanchonete perto do jornal, cruzo com ele na portaria. Fazia calor e estranhei vê-lo enfiado numa jaqueta de couro, com as faces afogueadas e os olhos muito vermelhos. Ao perceber que ele não estava bem, nossos colegas Carlos Herculano Lopes e Carlos Gropen o convenceram a se consultar. Marcaram um horário no início da noite com o cardiologista Luiz Otávio Savassi. Emérito hipocondríaco, Roberto nem desconfiava que estava enfartado. Após o diagnóstico, o médico o conduziu ao Hospital Luxemburgo, em cuja UTI conseguiu interná-lo.

De madrugada, no intervalo da partida Brasil e Inglaterra na Copa do Mundo da Coreia e do Japão, o locutor Galvão Bueno anunciou para todo o país a morte do cronista mineiro. Dias antes, eu tinha lhe falado da minha satisfação em vê-lo de volta ao nosso time. Senti-me realizado ao ler a resenha do Marcello sobre “Hilda Furacão”, finalmente publicada. Depois do enterro, fiquei sabendo que nosso amigo se recusara a integrar a equipe que cobriria a Copa daquele ano. Motivo de piada devido ao notório pânico de avião, Roberto alegou que seu medo maior era morrer longe de casa.

Inspirado na pop art (termo utilizado pela primeira vez em 1954 pelo crítico inglês Lawrence Alloway, para definir o movimento artístico que contrapunha o expressionismo abstrato), Roberto Drummond criou um jeito próprio de escrever. Tornou-se mestre e único discípulo da literatura pop, influenciado pela arte de Andy Warhol e Robert Rauschenberg. Publicou vários romances e coletâneas de contos, sendo “Hilda Furacão” sua obra mais conhecida. 

Jorge Fernando dos Santos – Jornalista, escritor e compositor, tem 46 livros publicados. Entre eles, Palmeira Seca (Prêmio Guimarães Rosa 1989), Alguém tem que ficar no gol (finalista do Prêmio Jabuti 2014), Vandré – O homem que disse não (finalista do Prêmio APCA 2015), A Turma da Savassi e Condomínio Solidão (menção honrosa no Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte 2012

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