Um dia descobri que cantava - Santa Tereza Tem
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Um dia descobri que cantava

Por Elza Soares –

Não poderia deixar de prestar essa homenagem a Elza Soares, figura por quem tenho grande admiração, não só como profissional da música, mas como pessoa, por ter sido exemplo de mulher, que nunca se deixou abater pelas inúmeras dificuldades pelas quais passou e por sua luta contra o feminicídio, contra o preconceito racial e de gênero.

Pra mim foi um privilégio ter pode assistir a um dos seus últimos shows, antes da pandemia no Sesc Palladim, aqui em Belo Horizonte. Foi pura emoção.

Publico abaixo um texto escrito por ela que vale a pena ser lido.

“Um dia descobri que cantava.
O meu filho mais velho João Carlos estava morrendo e eu já tinha perdido 2 filhos e não queria perder mais um.
Eu não tinha dinheiro pra cuidar do meu filho e ouvi no rádio que o programa do Ary Barroso de calouros Nota 5, estava com o prêmio acumulado. Não sei como, mas eu sabia que ia buscar esse prêmio!

Fiz a inscrição e me avisaram que eu precisava ir bonita. Mas eu não tinha roupa nem sapatos, não tinha nada! Então, eu peguei uma roupa da minha mãe, que pesava 60kg e vesti, só que eu pesava 32kg, já viu né? Ajustei com alfinetes. Tudo bem que agora é moda ne? Hoje até a Madonna usa, mas essa moda aí fui eu que comecei viu? Alfinetes na roupa é muito meu, é coisa de Elza!
No pé coloquei uma sandália que a gente chamava de “mamãe tô na merda”, e fui!

Quando me chamaram, levantei e entrei no palco do auditório. O auditório tava lotado, todo mundo começou a rir alto debochando de mim
Seu Ary me chamou e perguntou:
_ O que você veio fazer aqui?
_ Eu vim Cantar!
_ Me diz uma coisa, de que planeta você veio?
_ Do mesmo planeta seu Seu Ary.
_ E qual é o meu planeta?
_ PLANETA FOME!

Ali, todo mundo que estava rindo viu que a coisa era séria e sentaram bem quietinhos.
Cantei a música Lama.

O Gongo não soou e eu ganhei, levei o prêmio e meu filho está vivo até hoje, graças a Deus!
De lá pra cá, sempre levo comigo um Alfinete.

Naquela época eu achava que se tivesse alimentos pros meus filhos, não teria mais fome. O tempo passou e eu continuei com fome, fome de cultura, de dignidade, de educação, de igualdade e muito mais, percebo que a fome só muda de cara, mas não tem fim.
Há sempre um vazio que a gente não consegue preencher e talvez seja essa mesma a razão da nossa existência”.’

Elza Soares ((Rio de Janeiro, 23 de junho de 1930 – Rio de Janeiro, 20 de janeiro de 2022)

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