Hoje, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, data importante, em um momento em que nosso país vive, conforme noticiado nas redes sociais e pela imprensa, vários fatos relacionados ao preconceito aos nossos irmãos e irmãs, compatriotas negro. E para quem não sabe, o bairro de Santa Tereza abriga dois quilombos urbanos, o Kilombo Souza e o Quilombo Matias.
A história da formação do bairro fala dos imigrantes espanhóis, italianos e portugueses, mas não menciona a participação dos escravos recém-libertos que vieram para o bairro, com suas tradições culturais e que com seu trabalho tiveram importante atuação na construção deBelo Horizonte e formação do bairro Santa Tereza.
Os pioneiros já se foram, mas seus descendentes ainda ocupam os mesmos territórios de seus antepassados e guardam a história e a cultura ancestral.
O Kilombo Souza, na Rua Teixeira Soares, antes chamado de Vila Teixeira, ocupa uma área que começa nessa rua e termina quase na Rua Pouso Alegre, nos fundos da Caixa Econômica e foi muita luta para permanecer no local.
Essa luta culminou em 2019, com reconhecimento do território como Kilombo Souza pela Fundação Palmares e em 2020 como Patrimônio Imaterial da capital mineira pela Diretoria Municipal de Patrimônio Histórico.
A história começou com a chegada do escravo liberto pela Lei Áurea, Petronillo de Sousa (1879) e Elisa da Conceição (1887), que, casados, em 1915, vieram para Belo Horizonte, atrás de oportunidades na nova capital.
Petronillo atuou como carpinteiro, inclusive na construção das portas da Igreja da Boa Viagem, lavrador em sítios, plantou hortaliças e criou animais (porcos e galinhas) para comercialização na região, onde hoje é Santa Tereza.
Elisa de Souza adquiriu, em 1923, um terreno, um despenhadeiro coberto de mato, na época em que ainda não havia a rua onde está hoje o Kilombo. Ali a família limpou o terreno, construiu uma casa, teve os filhos, plantou e trabalhou, contribuindo com o processo de urbanização do bairro ao longo dos anos. O terreno, conforme o contrato de compra e venda, foi vendido por Arthur Ramos, dono desde 1905 da antiga fazenda Américo Werneck.
No local vivem atualmente 14 casas, com um total de 40 pessoas, entre crianças, adolescentes e adultos, onde, apesar de em pequena escala, para consumo próprio, cultivam verduras e árvores frutíferas como os antepassados.
Dona Lídia Martins de Araújo, matriarca do Kilombo Souza, neta de Elisa de Souza, que comprou a área do atual Kilombo, veio para Santa Tereza aos três anos, criando aqui raízes. Casada com seu Raimundo, já falecido, é mãe de Cláudio, Gláucia (que hoje é a líder comunitária do Kilombo) e Elisabete.
Formou-se em técnica de contabilidade, no Colégio São José e praticante do espiritismo, fazia trabalho social no Centro Espirita Pai Joaquim de Aruanda, no bairro Jardim América, onde trabalhava com as crianças e organizava as festas e ajudava as famílias necessitadas. Por muitos anos trabalhou em uma escola de yoga para ajudar nas despesas da família. Festeira, é fã Carnaval e adora comemorar as datas dos aniversários dos familiares.
Hoje, com quase 90 anos está com a saúde debilitada, mas não abre mão de participar das festas e da vida comunitária do Kilombo.
O Quilombo Matias, apesar de antigo no bairro, data do início do século XX, ainda está em processo de reconhecimento pela Fundação Palmares e tem como matriarca Dona Nair Policarpo Matias Dias, com 94 anos.
Quem nos conta essa história é Patrícia Brito, antropóloga e diretora da Associação Comunitária do Bairro Santa Tereza, que está produzindo o estudo técnico sobre o Quilombo. “A Família Matias já se auto reconheceu como um Quilombo e a partir disso entramos com o processo (01420.102120/2022-86), na Fundação Palmares para o seu registro.
O Quilombo Matias, que fica na Rua Eurita, logo atrás da igreja, é remanescente do Quilombo de Pinhões, em Santa Luzia. Segundo o estudo, no século XVIII, seus ancestrais viviam junto à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Macaúbas, Santa Luzia, onde serviam como escravos à igreja.
Com o fim da escravização no Brasil, em 1888, os escravos recém-libertos foram se organizando e adotando sobrenomes com referência portuguesa. Assim surge a Família Teles, da qual a Família Matias descende.
No início da capital, parte de seus integrantes vem para Belo Horizonte, buscando uma vida melhor e preparar o lugar para a vinda dos outros familiares. Assim a Família Matias, no início do século XX, chega ao bairro de Santa Tereza, e passa a viver em uma grande área na Rua Eurita.
Primeiro vieram os avós de Dona Nair, hoje a matriarca, e logo depois chegaram seus pais. Parte dos integrantes vão trabalhar no serviço de bonde de Santa Tereza e outros, em feiras. Segundo Dona Nair, ela vendia produtos alimentícios cultivados pelos seus parentes, que continuaram em Santa Luzia, em feiras e a de Santa Tereza era uma delas.
Com o crescimento da família, parte se mudou para um terreno no Paraíso, antiga Vila Paraiso e a partir do século 21 foram outros bairros, como Sagrada Família. Assim, segundo Patrícia Brito, a Família Matias tem uma perspectiva quilombola chamada de “Família Quilombola Estendida”, que ultrapassa a questão territorial de um bairro e ocupa outros espaços na cidade.
Um integrante conhecido do Família Matias, é o Maestro Márcio Antônio Matias, que rege e canta em alguns corais da cidade e toca nas missas da Igreja de Santa Teresa e Santa Teresinha.
Matérias relacionadas à luta do Kilombo Souza
Audiência Pública na Câmara
Comunidade mobiliza-se em apoio à Vila Teixeira
Reunião no 16º BPMG prepara o despejo dos moradores
Vila Teixeira ganha força
Vila Teixeira: suspenso o despejo