Artigo: Entre a burocracia e a violência contra as mulheres - Santa Tereza Tem
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Artigo: Entre a burocracia e a violência contra as mulheres

Artigo: Entre a burocracia e a violência contra as mulheres, mais uma lei se apresenta

*Larissa Peixoto 

Entre a teoria e a prática, onde fica a lei? É isso que penso quando vejo mais uma lei sobre violência doméstica, como a Lei 22.256/16, proposta pelo deputado Cristiano Silveira (PT) e promulgada pelo governador Fernando Pimentel (PT) na semana passada.

Os dados sviolencia mulherobre violência doméstica no Brasil são estarrecedores. Para quem não passou por isso, é inimaginável, ter, na pessoa na qual mais confia e depende, o seu algoz. Não ver saída, pois ele fala que vai lhe achar, vai arruinar sua reputação, vai matar você, vai lhe destruir, matar seus filhos e filhas, que vai atrás da sua família. Ouvir, todos os dias, que você não vale o chão que pisa, que a culpa é sua por ele ser assim, por fazer o que faz. Tudo isso, eu, por sorte, só sei de relatos.

Para as mulheres que viveram e vivem esse tormento, a palavra na página traz pouco alento. A Lei Maria da Penha, sem dúvida, é uma vitória. Dá nome aos bois, tipifica a violência em todas as suas formas e define o caminho ideal a partir da denúncia. A Lei 22.256/16, partindo da Lei Maria da Penha, busca proteger as mulheres mineiras ao descrever como deve ser o atendimento e a coleta de dados.

No entanto, ela não toma voz de ordem. Não determina qual órgão é responsável por qual ação. Não sabemos quanto tempo demorará para novos formulários chegarem às mãos necessárias para a coleta de dados. Não fala sobre a celeridade do judiciário em casos de violência doméstica, um grande problema para as mulheres as quais já foi garantida a medida protetiva, mas esperam meses para tê-la em mãos. O artigo 6º afirma: “A coordenação, no Estado, da política de que trata esta Lei caberá a órgão ou comitê competente, garantindo-se, no último caso, a participação de representantes da sociedade civil”. Quais são os órgãos e comitês competentes? Qual é o orçamento para a criação de mais casas-abrigo? Já estão fazendo a licitação? Quando será feita a capacitação das pessoas, que lidam com estes casos, incluindo delegacias comuns, Polícia Militar e órgãos de perícia médico-legal? No mundo da “escola sem partido”, quando será que as crianças mineiras terão aulas sobre igualdade de gênero, violência doméstica e como agir quando sua mãe está sendo vitimada?

Ter a lei é um primeiro passo. É o passo mais fácil. Porém, todas essas perguntas permanecem. Comparado a outros estados, Minas Gerais está em uma posição melhor. Subnotificação é um grande problema e, por isso, não temos certeza em que pé estamos. Dos casos notificados, sabemos que para cada mulher branca assassinada, há duas mulheres negras assassinadas. A violência de gênero conhece sim, cor e classe.

A burocracia tem dois lados paradoxais. Em um, é como água, entra em todos os lugares, por menores que sejam. Em outro, é como pedra, impedindo mudanças e avanços. Com tantos órgãos, comissões, comitês, conselhos e delegacias de duas polícias, quando será que iremos ver um verdadeiro avanço na proteção das mulheres? Não podemos mais esperar pela burocracia se adaptar.

“Em lugar nenhum K. tinha visto antes, como ali, as funções administrativas e a vida tão entrelaçadas – de tal maneira entrelaçadas que às vezes podia parecer que a função oficial e a vida tinham trocado de lugar”.

Franz Kafka, O castelo, p. 92, Cia. Das Letras, 2001 [1922]

Texto completo da lei : https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=LEI&num=22256&comp=&ano=2016

*Larissa Peixoto é doutoranda em Ciência Política pela UFMG, com especialização em gênero

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